sábado, 19 de junho de 2010


DESTINO

Sempre achei que houvesse um porquê de estar nesse mundo. Nunca me dei por satisfeita, vendo minha barriga cheia enquanto tantos morriam de fome. Sempre procurei estar presente na dedicação aos mais necessitados. Apesar de ter nascido quase em berço de ouro e criada como uma princesa, passando das mãos do pai para a mão do marido, não tinha homem que me fizesse ficar parada em casa, só cuidando de filhos e freqüentando salões de beleza e jantares sociais. Meu negócio era pegar meu fusquinha, que, na época, era o carro da moda, colocar meus quatro filhos, pequenos ainda, no banco de trás e tomar o rumo da Tataúba, o bairro mais miserável que tinha na cidade. Lá sim, me sentia gente e consciente do objetivo divino: ser alguém pra fazer o bem.

Entre todas essas andanças pela vida, tomei outra decisão importante: adotar um filho. A essa altura, com a família estruturada e filhos crescidos, precisava ter alguém que precisasse realmente de uma mãe. Lá estava eu, prontinha, a me dedicar de corpo, alma e até seios se fosse preciso. A adoção não foi só minha, foi de todos. Éramos uma família escolhida para acolher Fabiana. Aquela menina, tão pequenina e fraquinha. Vinte e três dias de vida somente e, a partir de agora com um futuro imenso pela frente. O paparico era geral. Ela segurava com a mãozinha o nosso dedo, com força, talvez querendo que ficássemos perto o tempo todo. Foi o que aconteceu! Que sortuda essa garota! Veio ao mundo para ser feliz, vez que ganhou pais tão dedicados e irmãos tão carinhosos.

Já entrando na terceira idade, me deparo com o maior problema da minha vida. Meu marido passou a fazer hemodiálise e no decorrer de dois anos vi meu grande amor definhar na minha frente.

Nunca bebeu, fumou, mas sempre adorou uma boa mesa, farta e agora tinha que se contentar com um pouquinho disso, mais aquilo, tudo completamente sem sal, ou quase isso. Estava resumido a um pedaço de gente sem a menor pretensão de continuar vivendo nessas condições precárias.

Passei, então, a providenciar sua pastinha de palavras cruzadas, arrumar um forro bem lavado e cheiroso para cobrir sua cadeira onde fazia quatro horas de hemodiálise e um travesseirinho para os pés, tentando, assim, aliviar seu sofrimento. Três vezes na semana, às 6h da manhã ele saía para renovar seu organismo. Me dava um beijo na testa e ouvia de mim um “ Vai com Deus” bem animado. Mas ao fechar das portas, só mesmo Ele sabia o quanto era difícil compartilhar dessa dor.

Seu estado foi definhando, e seus olhos já não tinham mais brilho algum, quando surgiu uma esperança: um transplante renal. Como? Onde? De quem? Talvez dos filhos, dos irmãos, ou quem sabe da esposa!

A esposa! Após dezenas de anos de convivência, quem sabe ela tenha chances de conseguir doar o rim. A compatibilidade acontece aos poucos e, no caso, claro que iria acontecer comigo! Muitos, mas muitos exames foram realizados. E chegou-se à conclusão: eu seria a doadora do rim para aquele que passou por tantas e boas comigo e, naquele momento, mais do que nunca precisava da mão estendida de quem sempre esteve disposta a estender. Foi ali, na hora em que nos casamos e com as alianças colocadas nas nossas mãos que senti nossos laços unidos para sempre, e agora com um rim meu dentro dele, funcionando a todo vapor, nada poderia conspirar contra. Era a vontade divina e seria feita a todo custo.

Mãos dadas, em macas separadas, ele olhou pra mim meio sem graça. Estava pálido e enrugado. A máquina que filtra também suga. Eu estava sorrindo e tendo a absoluta certeza de que tudo iria dar certo.

Ele entra primeiro, enquanto aguardo deitada a minha vez. Lembro da Tataúba, dos meus filhos tão grandes já, e da minha caçulinha, também uma moça e muito parecida comigo. E lembro de Deus ainda dentro da barriga da minha mãe, me dizendo que minha vida era de entrega e amor e que aquele momento que eu estava passando era o mais lindo e realizador. Sairia do hospital com um rim a menos, mas um marido novo em folha, uma família mais unida ainda e a certeza de que tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Acho que já ouvi isso antes. Numa música, talvez, ou num verso. Não sei. A anestesia está fazendo efeito. Meu olhos vão-se fechando, fechando, fechando...

Fato verídico acontecido com a minha mãe Isa Villela

2 comentários:

  1. Emocionante, Fernanda. De verdade. Fico muito feliz por vc ter acatado a ideia de criar seu blog. Garanto que vc vai curtir, e muito, postar suas histórias, lembranças, textos e palavras por aqui.
    Vou virar teu seguidor.
    Bj!

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  2. Filha, vc é maravilhosa! Por este motivo me vê com tanto amor. Sou apenas uma mãe que ama. Uma avó apaixonada. Um ser humano que assumiu missões e precisa do amor de vcs para cumprir o dever de casa. Papai do Céu foi muito generoso comigo qd me deu essa família linda!
    Bjs e te amoooooooooooo!

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